sábado

O Claustro


Entreguei-me compulsoriamente ao isolamento, sou apenas eu - Sim, apenas eu e minha solidão. Consumo-me, sinto todos os meus medos e angústias se precipitarem do outro lado da porta e, fora do claustro, protejo-me e projeto conjecturas sociáveis. Meu coração está sempre a um só compasso, num sossego entorpecido. Contento-me com algumas emoções que das leituras fluem. Há anos que não saio, há anos... Ah! Tomo-me de angústias, acendo um cigarro, circulo pelas salas, dou mil voltas em meu eixo, dirijo-me à varanda, do alto observo indivíduos transitarem nas últimas lajes da construção. Um alento ao ver o mundo em riste, linear. Criaturas na labuta, vivendo suas vidas, vivendo...

Sinto fome – Sim, contento-me com essa dor. Em contritos passos dirijo-me à despensa, está vazia, sempre está vazia e lembro-me de minh'alma. Já por hábito, sento-me ao chão, e repasso à vista nas tele-ent...Deus! Aquilo que me subsiste não chegará a tempo! Volto à varanda, a obra está quase finda. Não verei mais os laboriosos da pedra e do cal pausarem à labuta e se alimentarem em convivas. Brevemente voltarei a me alimentar sozinho.

sexta-feira

110 anos de René Magritte - O Poder do Inconsciente


Ao acessar o Google, me deparei com uma homenagem em seu doodle ao grande surrealista Belga René Magritte(1898-1967), que hoje completaria 110 anos.
O surrealismo que floresceu na Europa e nos Estados Unidos nos anos vinte e trinta, começou com um movimento literário promovido por André Breton. Magritte usava escrupulosamente técnicas realistas para apresentar cenas alucinatórias que desafiavam o senso comum.


Magritte - Os Amantes


Carlos Drummond de Andrade, em seu poema Destruição exprime sua forma de ver a questão do amor demonstrada por Magritte em Os Amantes:
Destruição
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.
Carlos Drummond de Andrade.


"A mente ama o desconhecido. Ela ama imagens cujo significado é desconhecido. A mente por si própria é desconhecida."(René Magritt)

Com palavras e sem elas

Com palavras... (Daniel Quinn)



Sem elas... (os famintos)


Esta última foto, vencedora do Prémio Pulitzer por Kevin Karter, foi tirada em 1994, durante a grande crise de fome que avassalou o sudão. A foto mostra uma criança faminta e agonizante, que rasteja na direção do campo de alimentos das Nações Unidas, situado a 1 km de distância. O abutre espera que a criança morra. Esta foto chocou o mundo inteiro, ninguém sabe o que aconteceu à criança, nem mesmo o fotografo Kevin Karter, que deixou o local logo que tirou a foto.

Três meses mais tarde, Carter suicidou-se devido a uma depressão severa.

Fonte: http://www.scribd.com/doc/904575/FOTOS-DA-FOME

segunda-feira

Rever e ter um outro olhar...


Nesta obra de Rembrandt, intitulada "O retorno do filho Pródigo", se percebe na figura principal que uma de suas mãos é claramente feminina. Existe uma diferença abismal entre ver e ter um segundo olhar sobre uma obra. Entre ver e sentir.

domingo

Cordial e distante...



Cada espécie de homens tem suas características, seus aspectos, seus vícios e virtudes e seus pecados mortais. Um dos signos do Lobo da Estepe era o de ser um noctívago. A manhã era para ele a pior parte do dia, causava-lhe temor e nunca lhe trouxera nada de bom. Nunca fora alegre em qualquer manhã de sua vida, nunca fizera nada de bom na primeira metade do dia, não tivera boas ideias, nem divisara nenhuma alegria para ele ou para os demais. Ao começar a tarde, ia reagindo lentamente, principiava a se animar e, ao cair da noite, em seus melhores dias, tornava-se frutífero, ativo e, às vezes, até brilhante e alegre. Disso decorria sua necessidade de isolamento e de independência. Nunca existira um homem com tão profunda e apaixonada necessidade de independência como ele. Em sua juventude, quando ainda era pobre e tinha dificuldades em ganhar a vida, preferia passar fome e andar mal vestido a sacrificar uma parcela de sua independência.
Nunca se vendera por dinheiro ou vida fácil às mulheres ou aos poderosos, e mil vezes desprezara o que aos olhos do mundo representa vantagens e regalias, a fim de salvaguardar a sua liberdade. Nenhuma ideia lhe era mais odiosa e terrível do que a de exercer um cargo, submeter-se a horários, obedecer a ordens. Um escritório, uma repartição, uma sala de audiência eram-lhe tão odiosos quanto a morte, e o que de mais espantoso podia imaginar em sonhos seria o confinamento num quartel. Sabia subtrair-se a todas essas coisas, a custo de grandes sacrifícios e nisso residia sua força e virtude, nisso era inflexível e incorruptível, nisso seu caráter era firme e retilíneo.
Só que a essa virtude estavam intimamente ligados seu sofrimento e seu destino. Ocorria a ele o que se dá com todos o que buscava e desejava com um impulso íntimo de seu ser acabava por ser-lhe concedido, mas em grau demasiadamente superior ao que convém a um homem. A princípio, o que obtinha parecia-lhe um sonho e uma satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu amargo destino. Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo dinheiro, o subserviente pela submissão, o luxuoso pela luxúria. O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência. Havia alcançado sua meta, seria sempre independente, ninguém haveria de mandar nele, jamais faria algo para ser agradável aos outros. Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar.
Mas em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais ténue de falta de relações e de isolamento. Havia chegado ao momento em que a solidão e a independência já não eram seu objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e sua sentença. O maravilhoso desejo fora realizado e já não era possível voltar atrás e de nada valia agora abrir os braços cheio de boa vontade e nostalgia, disposto à fraternidade e à vida social.
Tinham-no agora deixado só. Não que fosse motivo de ódio e de repugnância. Pelo contrário, tinha muitos amigos. Um grande número de pessoas o apreciava. Mas tudo não passava de simpatia e cordialidade; recebia convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele, ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar de sua vida. Agora rodeava-o a atmosfera do solitário, uma atmosfera serena da qual fugia o mundo em seu redor, deixando-o incapaz de relacionar-se, uma atmosfera contra a qual não podia prevalecer nem a vontade nem o ardente desejo. Esta era uma das características mais significativas de sua vida.
Hermann Hesse - O Lobo da Estepe

quinta-feira

Há muito tempo que não escrevo...


Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação.
Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.
Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria.
Há muito tempo que não sou eu.

Fernando Pessoa - Livro do Desassossego

terça-feira

Fragmentos ( II )

IMAGINO...
Imagino um tornado de uma imensurável proporção
Onde tudo é devastado, qual monstro devorador
Imagino o que tu tinhas, tuas amadas fotografias
Então somente imagino
Distante da tua dor!
Carlos Barros

sábado

O Fim dos Livros Encadernados


Após alguns instantes na livraria, no qual se viam poucos livros dispersos nas prateleiras, Hermann, já homem feito, lembrara-se de sua época de infância, em datas que sua pouca idade não o habilitava à escola.
Seu Pai que muito pouco lhe dera atenção, o presenteara com uma coleção de pequenos discos de vinil, no qual se narravam histórias com fundos musicais dos clássicos da literatura infantil. As ouvia num portátil toca-discos, que ao primeiro contato lhe parecia algo sem funcionalidade, entretanto, aquilo era uma pequena caixa com um tampo retrátil que se limitava a tocar pequenos discos, no qual, sozinho em seu quarto, ouvia aquelas belas histórias que o transportavam para aquele universo de contos infantis.
Tempos depois já rapazote, por ocasião de seu aniversário, recebera de seu avô materno alguns livros de uma coleção que se intitulava “Para Gostar de Ler”, no qual continha um cartão escrito com a seguinte frase: “Engatinhar, andar e correr. Este é o processo meu neto!”.
Eram livros simples e prazerosos que o conduziam a um novo universo, onde cada parágrafo, cada página o estimulara cada vez mais à leitura, no qual mais tarde o levariam aos clássicos da literatura mundial.
À medida que percorria as prateleiras quase vazias da livraria, lembrara-se do cartão que o avô lhe havia escrito, bem como do seu primeiro contato com aquele toca-discos, que tantas vezes escutara a pouca altura, para não chamar a atenção de seu pai e, ao mesmo tempo, não ser chamado à atenção por ele.
Não obstante, sabia que nada se comparava ao contato físico com o livro, a impressão, o odor, as ilustrações, as anotações à margem, o marulhar das páginas, e tantas outras sensações que os livros que o avô lhe dera, lhe permitiram sentir a partir de então.
Depois de desistir da incessante procura de um Hemingway que a muito pretendia, se dirigiu a seção de literatura infantil. Resolvera comprar um livro de contos adornado de ilustrações que agora então, iria ler e compartilhar com seu filho que completara quatro anos.
Percebera que nenhum livro infantil estava exposto, deparou-se com um livro que decerto alguém deixara na seção errada, era uma obra prima de Kafka, intitulada “A Metamorfose”, que trata do aniquilamento do homem moderno, da sua desesperança e alienação do mundo que não consegue compreender. Devido às circunstâncias, até parecia que Kafka estava no devido lugar, perdido e desconcertado, bem condizente em meio àquelas prateleiras abandonadas, onde acima se lia: “Seção de Literatura Infantil".
Voltou-se para o outro lado da seção e, ao invés de livros, deparou-se com uma grande quantidade de CDs, DVDs, propagandas de Audiobooks, e-books e tantas outras inovações tecnológicas, voltadas para aquela nova geração de “leitores”.
Desistindo da empreitada, seguindo em direção a saída, percebeu o aceno de um funcionário que vinha sorridente em sua direção, no qual só agora resolvera lhe dar atenção. Perguntou-lhe o que desejava, com um certo ar de quem já tinha a ponta da língua, um “não temos” como resposta.
Depois de pronunciar o que Hermann já imaginara, lhe propôs por alguns trocados, o envio por e-mail de um audio-book de Hemingway, no qual o “baixaria” de um Sítio que obviamente não tinha intenção de revelar.
Virou-se sem lhe dar resposta alguma, e após sair da livraria, Hermann profetizava um futuro bem próximo, onde os livros encadernados seriam um artigo de luxo, vendidos em antiquários, para uma seleta clientela de resistentes nostálgicos. “Correr, andar e engatinhar”, parecia ser a nova ordem inversa das coisas.

domingo

Hoje, Vincent ...



A maestria de Don Maclean, numa terna canção que homenageia este extrardinário gênio da arte.

sábado

O Oposto da Vitalidade



Já se davam os primeiros sinais no pequeno Gregory. Vez por outra, via-se nele um ar melancólico, onde refletia-se de forma latente, um obliterado e quase indisfarçável estado de espírito. Uma mudança no seu modo de interagir que agora, fazia-se aos poucos conhecer-se. Estava envolto por algo nebuloso e atormentador, que ensaiava em sua mente o prenunciar de uma permanência nociva.

Sua percepção cada dia mais obscurecida do ambiente em que crescera, tornava-se mais evidente. Dava-se início a uma nova condição que até então jamais imaginara sentir, e que aos poucos, se apoderava de seus pensamentos, drenando sua energia, tal qual um parasita que se faz crescer à custa da vitalidade alheia.

Um estranho incógnito julgava-se agora, obrigado a sofrer uma ação de profundo desconforto, em todas as vertentes que direcionavam sua vida. Indiferente às alegrias ou desgostos, sentia-se cada vez mais desconexo daqueles à sua volta. Via-se arrastado para um mar de angústias e fobias, desproporcionais para alguém que mal completara oito anos.

Gregory era levado cada vez mais à um insólito isolamento, que de certa forma, parecia atenuar-lhe um sofrimento incompreensível, no qual dava-lhe um certo ar “incólume” da sua integridade biológica.

Aquilo que para ele era inominável, e que o sorvia com voracidade, retribuía-lhe com um novo e indelével modo de analisar o mundo, através de sensações angustiantes e pensamentos perturbadores.

Não raras às vezes, se achava sentado sob a sombra de uma retorcida oliveira, pela qual sentia uma profunda empatia, e que teimava em crescer no canto mais estreito da aresta de um largo muro que, por efeito, já se fendia, anunciando em suas rachaduras, o enorme esforço que dela se exigia para se sobressair dos penetrantes alicerces, e continuar a elevar seus ramos e fixar suas raízes, para que finalmente, pudesse cumprir o papel que lhe cabia na natureza. Mas, cada nova ruptura, predizia sua iminente e inevitável derrubada.

Gregory inquietamente, trazia para si aquela condição, prevendo o malogro e a evidente condenação daquela árvore. Sabia que ambos estavam a viver em condições adversas, tão distantes da concórdia que harmoniza e transcende a matéria. Lastimava-se profundamente ao ver a que duras penas, aqueles raquíticos galhos se esforçavam para dirigirem-se aos céus.

Quisera fosse esse o motivo de sua desventura, chegara a cogitar consigo, mas percebia que estava envolto por algo singular, análogo às suas digitais, direcionada apenas a si. Era seu próprio muro que o ameaçava, sem que ninguém até então percebesse.

Certa vez, sua mãe recostou-se na parede do terraço, e lá ficou a fita-lo. Lá estava Gregory, sentado num pequeno banco do jardim, arqueado, rabiscando a pele escura da terra, como alguém que adentra ao mar, e dedilha sem aspiração de registro, o espelho de suas águas, não mais que fazendo-as serpentearem.

Percebendo o estado solitário que Gregory encontrava-se naquele instante, foi em sua direção, sentou a seu lado, e por um breve momento ficaram ambos em silêncio. Com um olhar terno, mas de certa forma irrequieta, decidiu-se então de pronto perguntar, qual seria a razão de tamanha tristeza. De súbito, implodira em Gregory uma angústia exasperadora, deixando sua respiração ofegante, e seu coração a galope.

Debruçou-se sobre os joelhos, e com os braços, comprimia-os fortemente, numa mista tentativa de fuga e, de forma paralela, encurtar tais sensações que o impeliam de manter-se em condições de corresponder a preocupação que sua mãe agora o conferia.

Passado alguns minutos com a mão materna sobre a cabeça, se recompôs a tropeço, e tornou a dirigir seus olhos para ela, agora já marejados por intermitentes lágrimas. Continuva a chorar e no entanto, nem uma palavra lhe pudera vir à boca.

Voltou-se para a árvore ainda a soluçar, enxugou tremulamente suas lágrimas, fixou a vista ao rosto de sua mãe, e com um olhar de quem anseia a redenção de uma longa e dolorosa vida, encerrou o prelúdio daquele diálogo perguntando-a:

-Mãe, ainda vou crescer e ser feliz novamente?